segunda-feira, 16 de maio de 2011

Relação entre contratante público e privado: parceria?

Fiscalização & Parceria Contratado/Contratante - Limites da Relação Contratual - Aplicação de Penalidades[1]

Na melhor definição, “parceria” é uma relação formada para alcançar objetivos de maneira mais eficaz. É o famoso “ganha-ganha” na linguagem das negociações. É um conjunto de ações, destinadas a produzir benefícios a ambas as partes, ainda que com interesses opostos.

A compreensão comum diz que há parceria em um casamento, em um mutirão, na organização de uma festa, em cidadãos que se reúnem para promover o bem estar de seu bairro, de sua escola ou de seu condomínio. Há parceria quando professores se empenham em transferir conhecimentos e alunos se empenham para justificar a dedicação do mestre, estudando com esforço.

Já na pior forma de emprego da palavra, falar em “parceria” é utilizar de um recurso de linguagem, visando maquiar relações comerciais desequilibradas, nas quais apenas uma das partes terá vantagem. No mercado privado, muitas vezes o termo remete às idéias de emboscada e prejuízo ao fornecedor de bens e serviços.

Quem nunca recebeu uma oferta de “parceria” em relação a determinado produto ou serviço e a recusou com receio de cair em uma armadilha? Quem não lembra daquele iogurte funcional que o fabricante garante resultados em duas semanas ou seu dinheiro de volta? O consumidor compra o produto “na confiança” em seu parceiro. É o que se chama parceria try and buy, na qual a aquisição, normalmente, é a evolução de um prévio tempo de experimentação durante o qual a qualidade do produto será provada e comprovada. Contudo, na maioria desses casos, as expectativas da parceria não se concretizam para uma das partes, diante de prazos irreais e estratégias protelatórias.

Em algumas situações, a única evolução que se observa é para o ilícito, gerando incômodos, gastos e perdas.

Assim, falar em parceria no âmbito de contratos administrativos pode ser um marketing negativo. Pode ser interpretado como sinônimo de práticas escusas ou indesejadas, como ganhar tempo prorrogando datas de faturamento ou pagamento, furtar-se sem motivo ou com motivos insuficientes às obrigações avençadas, fugir do cumprimento de cláusulas de garantia e burlar os efeitos de penalidades corretamente aplicadas. De outro lado, atrasar pagamentos usando de poder exorbitante, sancionar o contratado sem possibilitar-lhe a prévia e suficiente defesa, atuar de modo imperativo e intransigente.

A verdadeira parceria está baseada nos seguintes princípios[2]:

· confiança e respeito mútuo entre contratantes e contratados;

· alcance de metas comuns, para solucionar problemas e, consequentemente obter "ganha x ganha" nas relações;

· métodos de comunicação efetivo;

· novas atitudes e padrões de comportamento.

De acordo com a doutrina privatista, definindo-se parceria tem-se[3]:

· A convergência de interesses, em que se decide trabalhar em conjunto em torno de objetivos comuns, sendo que, para efeitos práticos, fornecedores e compradores se comportam como sócios de um empreendimento, permitindo que os benefícios sejam repartidos entre si;

· Processo no qual ambas as partes saiam ganhando;

· Modo de negociar baseado na confiança, dedicação para metas comuns e uma compreensão das expectativas e valores de cada um (fornecedor e cliente).

Assim, quando falamos em parceria entre contratante público e privado, buscamos enfatizar a necessidade de colaboração para o alcance dos objetivos: objeto e preço. Sim, porque é necessário atentar para o fato de que os objetivos são diversos e que uma verdadeira parceria possibilita o alcance de ambos, em uma relação permeada pela lealdade e pela boa-fé. Uma relação de parceria possibilita, portanto, a satisfação de todas as partes envolvidas.

Ora, diante disso, seria apropriado dizer que, no contexto atual dos contratos administrativos, o contratante privado é um parceiro da Administração Pública? E isso, tendo-se em mente que a Administração Pública empreenderá todos os esforços para alcançar o interesse público, enquanto que o contratado de tudo fará para concretizar seus propósitos lucrativos?

As experiências concretas parecem mais se assemelhar a batalhas do que a parcerias... Contudo, continuamos ouvindo essa expressão cada vez mais, como um mantra que, repetido incessantemente, transformará a realidade.

Como intitular de parceria uma relação na qual uma das partes detém superioridade jurídica em face da outra, com poder para instabilizar o vínculo, submeter a outra parte a novas exigências e encargos, aplicar sanções e rescindir unilateralmente o ajuste? Aparentemente, o contratante privado estará sempre sob a mira do contratante público, como um oponente, não como um parceiro. Essa é a visão que o mercado tem dos contratos celebrados com a Administração Pública. Então, como chamar essa relação de parceria?

Sabemos que a superioridade do contratante público sobre o contratante privado decorre da superioridade do interesse público sobre o interesse privado, da necessidade de satisfação de interesses comuns e gerais, em detrimento, muitas vezes, de interesses (não direitos) individuais. Então, esta é e continuará sendo a tônica das contratações públicas, independentemente da evolução e aperfeiçoamento de seus regramentos.

Por isso, a pergunta que deve feita é “como transformar essa relação em uma parceria dentro desse contexto, sem alterar essas sólidas bases jurídicas?” E a resposta é: “Estabelecendo uma relação de confiança entre contratante e contratado”.

É urgente, portanto, a mudança de postura.

Mas essa não é uma tarefa fácil. Público e privado são, por definição, coisas opostas. O interesse público restringe e submete o interesse privado. O que é privado é de apenas um e não de todos. Assim, há e sempre houve certo melindre na relação público X privado (“a grande dicotomia”).

Para captar a dimensão do problema, tomemos o próprio processo de contratação pública como exemplo.

As empresas – nem todas, mas uma grande parte delas - adquirem o edital e, imediatamente, procedem à sua leitura com o objetivo de vislumbrar impugnações que possam trazer alguma espécie de vantagem. E essa postura de “busca de satisfação dos próprios interesses” permanece ao longo de toda a licitação. De outra parte, o pregoeiro ou membro da comissão de licitação, permanece em posição de defesa ou de ataque, conforme entender necessário. Ou, desde logo, mostra “quem manda”, visando coibir atitudes indesejadas.

E eis que se instala a batalha... O contrato é formalizado em meio a essa mesma névoa de conflito e litígio. Há desconfiança da Administração quanto à conduta do contratado – se entregará no prazo, se utilizará o material combinado, se atenderá com rapidez e presteza as solicitações. E, há desconfiança do contratado quanto à conduta da Administração – se pagará no prazo, se fará corretamente as medições, se atenderá solicitações de reequilíbrio econômico financeiro e, principalmente, se exercerá corretamente o poder de penalizar.

Para falar em parceria nos contratos administrativos, é preciso, antes de qualquer coisa, resgatar a fidúcia, quebrar o gelo, criar um ambiente propício – por que não dizer, um clima de camaradagem.

Entre as atitudes que podem ser tomadas, o primeiro passo é clarificar, desde o início, as regras do jogo. O contratante privado precisa saber com exatidão os detalhes da execução e, mais, os detalhes do acompanhamento e da fiscalização pelo agente administrativo designado para esta função. Estabelecer a dinâmica pela qual isso ocorrerá é fundamental. É sinônimo de segurança. Nenhum parceiro gosta de ser surpreendido pelo outro. Segurança gera tranqüilidade, tranqüilidade gera bom desempenho, bom desempenho gera resultados ótimos.

Um plano de acompanhamento e fiscalização pode ser traçado, indicando metas e resultados a serem obtidos. Por mais singelo que seja, será um ponto de partida, de modo que tudo o que puder ser, no futuro, exigido pelo fiscal do contrato já será de conhecimento de seu preposto, e que o descumprimento de tais normas de conduta, de tal “acordo de cavalheiros”, possa ser caracterizado como uma quebra da fidúcia, instabilizando a parceria e legitimando a outra parte a tomar as providências necessárias.

A elaboração do referido plano poderá contar com a colaboração prévia do contratante privado, ou posterior visando ao aperfeiçoamento. Mas a participação de ambos é necessária para formar um ambiente de parceria, contrário à idéia de unilateralidade.

O segundo passo é estabelecer uma comunicação eficiente e efetiva entre fiscal e preposto e um compromisso de atendimento das demandas de parte a parte. Não é compatível com uma verdadeira parceria a dificuldade ou a impossibilidade de proceder aos necessários ajustes de conduta em decorrência da dificuldade ou impossibilidade de estabelecer contato. É imprescindível determinar os canais de comunicação que serão utilizados, os horários em que os responsáveis estarão disponíveis, as formas alternativas de comunicação, os prazos para resposta. Novamente, a desatenção às regras representará quebra de fidúcia, dificultando a manutenção da relação contratante/contratado nos termos idealizados.

Sob outro enfoque, para além da relação fiscal/preposto, é preciso criar a sensação de que haverá boa vontade na análise e no atendimento de solicitações. E isso não apenas do contratado perante a Administração, mas também da Administração perante o contratado. O “deixar para amanhã” deve ser abolido, adotando-se o lema “o parceiro em primeiro lugar”.

O terceiro passo, de extrema importância, é acabar com o mito das injustiças e desmandos na aplicação de penalidades ao contratante privado. Para isso, é necessário que o agente público saiba exatamente quais são as possibilidades e os limites de atuação, compreenda as competências de cada ator neste processo, conheça as formalidades inerentes, e que o contratante privado sinta-se seguro quanto à observância do Princípio da Legalidade. Trataremos do assunto em breves palavras, dispondo em 5 (cinco) tópicos para melhor compreensão:

1 O objetivo da sanção

Primeiramente, deve-se contextualizar a atividade administrativa sancionadora, especialmente no âmbito contratual. A aplicação de sanções aos contratados decorre do exercício de uma prerrogativa pública conferida à Administração. O objetivo primordial é desestimular a prática de condutas juridicamente reprováveis[4] e evitar os efeitos que dela puderem advir. Estabelece-se consequências indesejadas, restritivas de direito, ao agente infrator, esperando que, ciente delas, deixará de praticar a infração. O objetivo da sanção não é a punição do agente com a inflição de um castigo, nem a obtenção de proveitos econômicos aos cofres públicos.[5] E, é nesse contexto que deve ser compreendida a atuação sancionadora no âmbito das licitações e contratos públicos, disciplinadas pela Lei 8.666/93 nos arts. 86 e seguintes e pela Lei 10.520/02, no art. 7º.

2 A motivação da sanção

É fundamental considerar que o exercício das cláusulas exorbitantes – e, frisa-se, a aplicação das sanções contratuais - apenas pode ocorrer em busca da melhor realização do interesse público tutelado. Daí dizer-se que o principal limite ao exercício de uma prerrogativa é exatamente o interesse público que a autoriza. Sem interesse público ou dele desbordando, não haverá legalidade, nem legitimidade. A atuação administrativa deve permanecer na estrita margem do necessário para a satisfação do interesse público, nem mais, nem menos. Desse modo, o Princípio da Motivação dos Atos Administrativos norteia obrigatoriamente a atividade administrativa sancionadora.

3 O dever de aplicar a sanção

O exercício das ditas prerrogativas públicas, por outro lado, apresenta-se como um dever da Administração, inafastável e impostergável por força do princípio da indisponibilidade do interesse público. Portanto, não se tratam de meros poderes especiais, mas de deveres cuja omissão pode levar à responsabilização. Em outras palavras, não se está diante de um poder exercitável sob critérios discricionários, mas de um dever-poder da Administração Pública[6] que não comporta inércia ou “não exercício”.

Essa vinculação traz consigo a certeza da atuação administrativa, ou melhor, a segurança quanto ao que dela se pode esperar. Ao dotar-se dessa objetividade, a atividade sancionadora assegura o tratamento isonômico a todos os infratores, impedindo a interferência de juízos pessoais e o privilégio de outros interesses e finalidades. Como efeito imediato tem-se o afastamento da idéia de que a Administração Pública aplica sanções ao bel prazer, com base em análise de conveniência e oportunidade.

4 A previsão das infrações e sanções correspondentes

Ainda em busca de promover a certeza e a segurança jurídica, a possibilidade de aplicar sanções depende da previsão das condutas consideradas infrações.[7] Assim, cabe à Administração regular a matéria em edital e/ou contrato, indicando as condutas vedadas e as respectivas conseqüências. Nessa atuação, alguns limites devem ser respeitados[8], tais como:

a) não cabe inovar, mas apenas desdobrar o texto legal e torná-lo aplicável;

b) qualquer interpretação legal não deve ocorrer para ampliar a aplicação da norma, ante a restrição de direito nela contida;

c) deve-se atentar para o conteúdo semântico das expressões legais, restringindo-se a determinar os termos genéricos;

d) devem ser considerados os Princípios da Proporcionalidade e da Razoabilidade para a fixação dos critérios de aplicação da sanção;

e) devem ser respeitados a garantia do Devido Processo Legal e o Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa na definição e condução do procedimento a ser seguido.

Assim, e como dito, na atividade de atribuir uma sanção a uma infração específica, a Administração deve atuar orientada pelo princípio da proporcionalidade, chamado, no Direito Penal, de princípio da dosimetria da pena. As sanções menos severas devem ser reservadas a infrações de menor gravidade e as mais severas, as de maior gravidade, assim sucessivamente. A gravidade da sanção dependerá da gravidade da infração. A assimilação e identificação dos diferentes níveis de gravidade deverá levar em consideração a relevância do objeto para o interesse público, o prejuízo causado pela infração, as normas vigentes e, conforme o caso, as características locais, como usos, costumes e moral.

5 A configuração da infração e o processo de aplicação

Por fim, para a imposição da sanção, é necessário verificar o atendimento a duas condições, quais sejam, a configuração concreta da conduta reprovável e a existência de culpa do contratado.

Sua aplicação exige observância do devido processo legal, com todos os meios e recursos a ele inerentes, conforme assegura o art. 5º, inc. LV e LVII da Constituição da República. Significa que o contratado terá direito a acesso irrestrito aos autos, à produção de provas, ao acompanhamento de eventuais diligências, à manifestação escrita, ao recurso administrativo cabível e a um julgamento justo, pautado nas informações contidas no processo.

Cabe frisar a atuação fundamental do fiscal do contrato no que tange à aplicação de sanções. Isso ocorrerá na apuração das falhas, na investigação das circunstâncias que permeiam a infração e na documentação formal das ocorrências, de modo a possibilitar o adequado exercício do contraditório pelo contratado e a correta fundamentação da decisão administrativa. O fiscal deve buscar a verdade, não se contentando com meias informações ou explicações insuficientes para embasar qualquer juízo. Veja-se que não se fala em aplicação de sanções pelo fiscal, mas em instrução do processo destinado a tanto.

Com efeito, a competência sancionadora, dada a sua natureza, deve permanecer em mãos de autoridades com poder de representação da Administração contratante. Cabe aos diversos entes federativos discipliná-la, estabelecendo, a Lei 8.666, apenas, que a competência para aplicação da declaração de inidoneidade no âmbito do Poder Executivo é exclusiva do Ministro de Estado, do Secretário Estadual ou Municipal, conforme o caso.

Ao fim e ao cabo, uma última palavra deve ser dita: a necessidade de estabelecer efetivamente uma parceria não significa a possibilidade de atenuar os rigores da escolha do parceiro e da fiscalização da execução contratual. É fundamental para a fórmula aqui sugerida que o desejado parceiro detenha condições de executar o contrato e venha a atuar de modo leal e honesto, possibilitando à Administração Pública a obtenção eficiente dos fins visados.

[1] Palestra proferida no I Congresso de Licitações e Contratos do Norte do Brasil, realizado de 10 a 13 de maio de 2011 em Manaus.


[3] Idem.

[4] FERREIRA, Daniel. Sanções Administrativas. Malheiros, São Paulo: 2001, p. 45.

[5] MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 20. ed., Malheiros, São Paulo: 2006, p. 798-799.

[6] VITTA, Heraldo Garcia. A sanção no Direito Administrativo. Malheiros, São Paulo: 2003, p. 65 e FERREIRA, Daniel., ob. cit, p. 40.

[7] JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11. Ed., Dialética, São Paulo: 2003, p. 617.

[8] DIAS, Eduardo Rocha. Sanções Administrativas. Malheiros, p. 83.

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